segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

MUDEI DE AMBIENTE


Por uns dias, andamos a distrair-nos na Pérola do Atlântico.

Passeando pela zona da Ajuda, no Funchal, uma zona bastante nova em termos de urbanização, onde os hotéis e os turistas começam a enxamear o espaço, eis que, na nossa caminhada vespertina, subindo com dificuldade a encosta dos Piornais, nos sentimos a olhar para novos motivos de interesse que fogem ao nosso dia a dia.
Ruas destas, com tanta inclinação, são mesmo típicas desta terra, é a primeira constatação. Depois, é a disposição geográfica das casas e a sua própria moldura, um misto estranho de beleza pelos abundantes verdes circundantes e de colocação inesperada das habitações, coladas à montanha por aquela encosta acima, o que me faz imaginar como podem ser servidas por acessos que não vislumbro...
Lá vejo aqueles apetitosos e volumosos cachos de bananas, ali à mão de semear, e outra vegetação desconhecida que me atira mais para ambientes africanos, como nas fotos podem admirar. São pinheiros, mas não são! Serão dragoeiros? Sim, com certeza, até pela nobreza do seu tronco...
E as casinhas semeadas pelas encostas, a dizer-me como foi doloroso e brilhante a adaptação dos madeirenses às sua condições naturais, tudo nos convida a apreciar estes ambientes diferentes, a saudar-nos agora com o carinho familiar e até dos amigos que aqui viemos encontrar.
Isto é mesmo repousante!


E POR AQUI ANDO EU, NESTA ROMÂNTICA E FLORIDA ILHA
Andar a pé é o melhor meio para observar pormenores. E umas vezes ficamos deslumbrados, outras, perturbados com o que a vista alcança. Aqui perto, na Ajuda, há uma grande rotunda com a estátua que podem observar e que me deixa um pouco pensativo acerca do seu verdadeiro significado. Dizem que é um dos monumentos da Madeira de louvor ao trabalhador, uma "Homenagem da Associação da Classe dos Mestres a todos os colaboradores responsáveis pelo desenvolvimento do setor da construção civil e das obras públicas na ilha da Madeira. Erguido no ano 2004 e executado pelo escultor Ricardo Velosa". Situa-se na Praça da ASSICOM.
Será a estátua de um anjo? Visto por detrás, até me convenceu, pois não se vê a cabeça... E os anjos não precisarão de cabeça! Basta-lhes as asas para se deslocarem pelos etéreos espaços... Mas, vista de frente, a estátua aparenta um anjo sofredor, de cabeça tombada, pendurado pelos ombros, mais como crucificado do que como colaborador heróico para o desenvolvimento da construção civil desta Madeira sempre a evoluir. Coisas da arte, onde nem tudo se vê com clareza.

Hoje, descemos pela primeira vez ao centro do Funchal. Comprámos os "giros" e lá fomos nos "Horários", uma viagem de uns 15 minutos. Depois, com uma boa guia e amiga, que desde pequena calcorreia estas ruas íngremes, subimos até à Calçada do Pico para visitarmos o "Universo das Memórias", mais conhecida talvez por museu das gravatas e dos cavalos. É um edifício do séc. XIX, de traça arquitectónica digna, que a Câmara comprou para aí depositar para os curiosos (e são muitos!) todo o espólio que o Dr. João Carlos Abreu, 1.º Secretário da Cultura da Região, foi comprando ao longo das suas muitas viagens. Lá vimos uma salinha com as suas muitas gravatas e outra com centenas ou milhares de cavalos e cavalinhos, mas a variedade e riqueza das peças expostas vale bem uma visita. Muitas peças orientais, jóias, pratas, patos, máscaras... Até um fato bem conhecido da Amália Rodrigues ali está exposto.

Para me chegar ao António Colaço, até consegui tirar à socapa a foto de uma ventoinha de gravatas (não me digam que foi aqui que ele se inspirou!...), igual à exposta no Almada Fórum e que eu não posso visitar.
Este senhor, Dr. João Carlos Abreu, de profissão jornalista de muitos jornais, até trabalhou no Vaticano e parece que a sua amizade por João Paulo II é que conseguiu que ele se deslocasse a esta ilha quando veio a Portugal. Lá está a foto do momento!

Mas deixemos este recanto de mil memórias e desçamos outra vez ao centro, caminhando já cansados pelos empedrados escuros, mas lindos, destas ruas de basalto, admirando ainda as flores, as árvores do lugar, que nos cativam com tanta beleza. São as chamadas "fogo da floresta", de uma riqueza de cor brilhante.

António Henriques



domingo, 12 de fevereiro de 2017

"SILÊNCIO" - o filme

Dá que pensar...

Hoje conseguimos ter a oportunidade de ir ver o filme de Scorcese, que nestes últimos tempos tem levantado opiniões contraditórias. Sinceramente, gostei. Uma das razões porque gostei foi ter passado todo aquele tempo (161 minutos!) bem desperto, sem passar pelas brasas.
O tema do filme atira-nos para o Japão do séc. XVII, quando a defesa dos valores tradicionais do Japão pelo shogunato leva à perseguição de tudo o que seja estrangeiro. E o cristianismo é o alvo principal e o símbolo maior de culturas estranhas, que desde S. Francisco Xavier se desenvolveu na sociedade japonesa e era preciso erradicar. No centro do vulcão, estão os jesuítas, quer pela sua força quer agora pela sua atitude perante os perseguidores. O édito de 1614 a proibir a fé cristã e a expulsar os missionários não foi suficiente e as comunidades cristãs continuavam na clandestinidade.
Mas chega à Europa a notícia de um célebre Padre Ferreira, ilustre missionário e formador de missionários, ter apostatado da sua fé perante os sofrimentos a que foi submetido, passando a viver segundo os valores japoneses e o budismo. Logo outros heróis se lançam à fogueira: mesmo perante a ameaça de morte certa, dois padres (Rodrigues e Garupe) conseguem entrar no Japão para em segredo contactar e animar as comunidades cristãs e descobrir o tal apóstata, até para o demover.
Todo o ambiente do filme se caracteriza por uma extrema violência contra os cristãos e especialmente os padres. Queimá-los com água a ferver de nascentes termais, pregá-los na cruz no meio de marés vivas até morrerem, decapitá-los, pendurá-los de cabeça para baixo com a cabeça na fossa, tudo contribui para dissuadir as pessoas a abandonar a sua fé, e, no caso dos padres, a grande preocupação era levá-los a apostatar para assim eles darem o exemplo aos outros cristãos.

E chega de história.
O mais importante para mim foi a encarniçada luta das autoridades japonesas contra a mentalidade cristã desta gente. Aquelas pobres almas, de fé simples, que diziam que pagavam todos os impostos, viviam aterrados com a chegada dos chefes. Mas não largavam a sua fé, pois Cristo prometera-lhes o paraíso, coisa que na terra lhes estava vedado. Há uma veneração exagerada pelo padre e muito mais por todos os símbolos cristãos, a ponto de o padre se ver obrigado a desfazer-se do seu rosário e distribuir as contas pelos aldeãos.

No meio dos fiéis, também surge um Judas, de nome Kichijiro, que tanto serve para esconder os padres e levá-los em segurança a outras povoações, como os entrega por boas quantidades de prata; capaz de apostatar pisando a imagem sagrada para não sofrer, vem depois, por várias ocasiões, a pedir a confissão num retorno à condição inicial de cristão como gente digna! É a figura mais triste, um invertebrado, que quase tira ao filme o ar de seriedade.

A personagem principal do filme, o Padre Rodrigues, levado por princípios rígidos de educação cristã, não cede em nada e ali está ele a servir em boa consciência a Igreja Católica. Ele e os simples cristãos encontram-se ameaçados por um poder político dominador, que condenava mesmo à morte. Caso o último padre resistente abjurasse a sua religião, os cristãos não teriam mais o suporte da sua fé. Daí toda a tramóia em volta do Padre Rodrigues, que se vê confrontado com a morte de cristãos, postos a sofrer horríveis castigos à sua frente. 
A tragédia é esta: se apostatares, os cristãos não sofrerão mais. Agora, escolhe: queres manter a tua fé e ver teus irmãos sofrer e morrer ou, por amor aos outros, renuncias à tua mentalidade cristã? Basta colocar o pé em cima da imagem de Cristo...
Até o célebre Padre Ferreira, apóstata, é trazido para convencer o seu antigo aluno: “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. Mas nem este consegue grandes avanços. O Padre Rodrigues defende «a verdade» de Deus e não dobra. Mas colocado perante situações extremamente desumanas, lá aceita, sem coragem e sem alegria, renunciar ao seu passado e iniciar uma vida diferente, ao lado de uma mulher com um filho, que ele recebeu de outro condenado.

Ter-se-á convertido? Aqui está o maior mistério do filme. Tudo se encaminhava para o extermínio da fé, que nas terras japonesas não fazia sentido, «eram um pântano onde não cresciam ideias novas», como se diz no filme. Mas este, mais que falar de derrota, apela para a vitória da fé, mesmo que esta seja apenas secreta e íntima. A própria mulher que o acompanha deposita às escondidas, junto do cadáver do padre, o pequeno crucifixo que um dia um camponês lhe oferece.

Interrogações:

1 – Quem consegue torcer o nosso íntimo, por maiores castigos que nos inflijam? Podemos tornar-nos “cristãos-novos” ou “budistas confessos” sem uma adesão íntima e sincera? Saí do filme a relevar esta omnipotência da consciência humana, que não dobra. Vamo-nos mudando pela força da razão, pela lógica dos conhecimentos e ainda pelo testemunho dos outros, o que explica as verdadeiras conversões.
2 – Quando é que a nossa fé é pura, consciente, bem esclarecida? É uma interrogação forte do filme, em que se diz, às vezes, que a fé cristã e a budista são iguais, numa alusão à inculturação que os jesuítas praticaram (Deus seria o sol, ou a natureza..., alega o apóstata padre Ferreira). A verdade é que as pessoas deixam-se matar por serem cristãs, como hoje outros matam à espera das 70 virgens que os receberão no paraíso...
3 – Li que a noção de Deus no filme está mal situada, como se Ele fosse um estranho a isto; pois eu achei que um Deus paciente, compassivo e tolerante está bem presente no gesto continuado do padre a absolver o pecador-judas.
4 - Agora, outra questão é o silêncio de Deus, que nada diz em nenhuma circunstância, parecendo deixar-nos ao abandono neste mundo de tantas interrogações. E quem não sentiu já este silêncio de Deus? O diálogo connosco próprios, o testemunho dos irmãos e da história é que nos vão animando. Estarei eu certo? Caminhar na fé é sempre andar com algum nevoeiro, como era aquele ambiente soturno, escuro, em grande parte das cenas do filme.
Fico-me por aqui para não pesar muito.


António Henriques




terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A VERDADE


Há verdades alternativas?
Que melhor aconchego para os ninhos das gaivotas?

Tenho andado há uns tempos intrigado com o que ouço e leio acerca dos sistemas de comunicação entre pessoas e países, que parece que, em vez de nos transmitirem o que aconteceu de verdade, nos impingem modos de ver “alternativos” a que chamam também “a verdade” e nos deixam sem saber em quem e em quê acreditar.

Eu sei que as emoções influenciam o nosso pensamento, segundo António Damásio, e que os nossos modos de pensar não são tão assépticos como gostaríamos que fossem. É mais fácil acreditar naquilo de que gostamos do que no inverso. Mas, mesmo assim, ainda pensava que as ideias podiam circular sem estarem viciadas por interesses ou conveniências.

Fala-se assim na era da pós-verdade, um chavão que contém muita perversidade. Há muitos anos já, habituei-me a verificar que até a matemática não é exacta em política, isto é, os números são interpretados de modos tão contraditórios que não dá para imaginar até onde pode ir a imaginação humana. O mesmo acontece noutros campos sociais, por ex. no desporto, em que os programas dos comentadores desportivos mostram bem como as imagens são interpretadas de acordo com os gostos clubistas, o que já me fez arrefecer bastante aquela sensação de pertença a um clube, dadas as muitas falcatruas que andam misturadas com o verdadeiro desporto.

Eu não queria afastar-me muito do essencial, para mim muito confuso e doloroso, que é dizer, como há dias escrevia um amigo meu: “nos tempos da pós – verdade, podemos afirmar, cada vez com mais certeza, que a verdade se transmuta consoante o interesse do emissor”. E assim, volta outra vez a pergunta de Pilatos a Jesus Cristo: «o que é a verdade?»

Das minhas leituras fez parte há uns meses o bem conhecido filósofo Edgar Morin e o seu livro: “As grandes questões do nosso tempo” (Edit. Notícias). Também ele nos repete: «Os nossos sistemas mentais filtram a informação: ignoramos, censuramos, repudiamos e desintegramos o que não queremos saber… Quase poderia formular esta lei psicossocial: uma convicção bem firme destrói a informação que a desmente». Ele chega a afirmar que a ideologia “é um sistema de ideias feito para controlar, acolher e recusar a informação. Se a ideologia é teoria, está em princípio aberta à informação não conforme, que a pode pôr em causa. Se é doutrina, está em princípio fechada a qualquer informação não conforme. A ideologia política é muito mais doutrina que teoria»(pág. 30).

Vigilância em companhia, a melhor solução.
Para mantermos a nossa imensa liberdade de espírito, temos de nos precaver seriamente contra estas correntes fortes de informação que nos empurram cegamente para modos de pensar balofos, com o título de modernos e arejados. Só conheço um modo de resistir a erros graves: é aceder a informações diversas, ler sobre os dois lados da questão. Isto pode ajudar a chegar à verdade, manter a independência e recusar seriamente a pós-verdade, um estado de espírito para mim desumano, inconveniente e castrador.

António Henriques 

Livre para voar, seguro para aterrar, forte para lutar.