Fala-se
tanto de Joan Miró... Por quê não hei-de ir até ao Palácio da Ajuda, aqui tão
perto, para olhar para aquelas «oitenta e cinco pinturas, desenhos, esculturas,
colagens e tapeçarias» que são propriedade do Estado português? Já fizeram
correr tanta tinta aqueles trabalhos avaliados em milhões...
E fomos
mesmo. Convidámos uns amigos para este passeio prazeroso e
zarpámos para o Palácio Nacional, onde nós já vimos coisas bem interessantes:
as extravagâncias da Joana Vasconcelos, os sons melodiosos do filho António
Luís integrado no Coro de Câmara de Lisboa e ainda uma outra obra musical de
que não me lembro bem...
Amálgama de materiais para dar forma e cor |
Confesso que
ia um pouco descrente, sem saber se ia gostar ou não. Mas a curiosidade era
muita. Muita era também a frequência daquele espaço, sinal da fama que Miró
arrasta nos nossos dias. À falta de guias que nos ajudassem a compreender
aquela produção artística, íamos lendo todas as informações e olhando para as
obras de Miró, muitas vezes sem nada perceber “como um boi a olhar para um
palácio”.
O que melhor
compreendi foi a tentativa de Miró em trabalhar com todos os suportes da sua
arte como se fossem uma novidade, dando-lhes novos sentidos e funções: uma
linha podia ser um arame, a cor podia ser representada por fios de lã, um
simples contraplacado rugoso, sem uma preparação do suporte, podia servir de
base a uma pintura ou colagem, a tinta ou o guache podiam ser substituídos por
pedrinhas... E porque não deitar fogo a uma tela, deixar actuar a sua energia e
verificar o resultado final?
Suporte rudimentar com pedras coladas a centrar a atenção |
Para André
Breton, Miró era o maior surrealista do séc. XX. Frequentando Picasso e outros
modernistas, para Miró a figura, seja humana ou material, tem de ser
ultrapassada, sobre-realizada, restando uns pontos e umas linhas em que
predomina o sonho, mais que a anatomia. Mestres no uso do desenho e da cor, os
surrealistas abriram caminho a formas mais ousadas de expressão artística.
As obras presentes na Ajuda representam 60 anos de trabalho,
em que as próprias tendências do artista vão variando, reduzindo-se cada vez
mais a técnicas simples e de poucos recursos pictóricos.
Nas vésperas da Grande Guerra, vemo-lo a pintar figuras
humanas de pescoço esguio e grandes cabeças, em que se pressente um ar
assustador, ou desenhos que parece quererem sair do suporte sem lá caberem.
Intrigante, toda esta exposição. Saio de lá a pensar que
outros vêem o que eu não vislumbro. Mas não deixo de admirar o equilíbrio, a
graciosidade e mesmo a gradação de linhas e cores que vi nalguns quadros.
António Henriques
António Henriques