É costume eu
participar na celebração da Morte do Senhor às quinze horas. Para mim, sempre
foi um momento significativo, tão forte que nunca fui capaz de viver aquela
hora sem parar na igreja ou em qualquer outro lugar onde estivesse.
Este ano não
foi possível estar na igreja. A convite de uns amigos que vieram de longe, não
quis furtar-me a um almoço com eles, o único possível encontro com quem veio de
muito longe e queria celebrar a nossa amizade. As decisões têm sempre outras
alternativas e temos de conversar com a nossa consciência para com ela discutir
sobre qual o melhor caminho. Para mim, foi este…
Assim, um
pouco pressionado por esta ausência de paragem à “hora tertia”, comprometi-me a
ir à noite à Via-Sacra na Igreja
Scalabrini, preparada e levada a cabo pelos jovens da paróquia, cerimónia em
que não costumo participar.
Sinceramente,
valeu a pena, não obstante as duas horas que o acto demorou. Logo à entrada da
porta, velas acesas e toda a igreja em semi-obscuridade convidavam ao silêncio
e ao recolhimento, a que os fiéis aderiram com normalidade. E toda a cerimónia
se viveu neste ambiente em que a luz focava, em cores diferentes, os motivos ou
os figurantes de cada cena.
No espaço do
altar, erguiam-se velas acesas, em grupos de sete, assim como na parede se
destacavam a estrela de David e o candelabro judaico de sete velas também, número
simbólico a indicar a realização completa da obra da salvação, juntando Antigo
e Novo Testamento num único momento de sacrifício salvador da humanidade.
As 14
estações da Via Sacra eram momentos de reflexão, unindo a palavra do Evangelho,
pequenos comentários e a representação cénica de cada um dos passos da Paixão e
Morte de Jesus. Estes jovens levaram a sério o seu trabalho, numa linguagem
adequada a cada momento, com gestos e movimentações suaves, entrecortadas por
cenas ásperas como o encontro no Getsémani, as três negações de Pedro e as
imprecações da plebe a gritar “Crucifica-o”.
O órgão unia
cada momento numa toada surda e o coro de crianças elevava a alma numa oração
cantada a Deus Pai, ao Filho ou a sua Mãe. 14 estações, 14 Padre-Nossos e 14 jaculatórias
“Nós vos louvamos e adoramos, Jesus Cristo / Que pela vossa santa cruz remistes
o mundo”.
Pormenores a
reter
1 – As criadas
exasperaram Pedro, que negava conhecer Jesus. Para mentir, até temos de
levantar a voz, embora sem sucesso, pois o galo não se esqueceu de cantar. A
mentira dói, e os amigos não merecem tal desatino…
2 – Aquele Pilatos
vivia cheio de força e ao mesmo tempo titubeante a andar por ali sem saber bem
o que fazer. Também lava as mãos e pergunta o que é a verdade, mas o poder
tolda as consciências e as respostas tornam-se desumanas.
3 – Simão de
Cirene, um estrangeiro, é obrigado a carregar a cruz que Jesus não suportava.
Os estrangeiros são muitas vezes tratados assim, infelizmente… Até a cananeia,
para ser atendida por Jesus, teve de dizer que «os cachorrinhos comem as
migalhas da mesa do seu senhor»… E quantas cruzes inesperadas nos surgem pela
frente a cada dia? Aceitar a vida com as sombras negativas é também atitude
cristã. Fê-lo Jesus, que não desejava tal fim humano…
4 – O Jesus
humilde, sereno, que poucas vezes levanta a voz, cabia bem na figura daquele
jovem. Com tanto frio que fazia, até foi crucificado. E as três pancadas do
martelo na cruz também me bateram no peito ou na consciência… Muito enternecedora
e trágica foi a cena de Maria a receber em seu colo o filho morto. Dá que
pensar.
5 – Termino,
para não me alongar demais, com os parabéns a todos os que prepararam este
momento de teatro religioso, que nos ajudou a reflectir e a rezar, sem esquecer
os que ficaram por detrás e ajudaram os jovens a preparar as cenas.
E volto a
elogiar todo o ambiente de recolhimento, provocado por luzes, sons e imagens
que nos fizeram concentrar no principal. Já S. Inácio de Loiola dizia que para
rezar era importante «fazer a composição do lugar».